Reflexões de Marilia Elstrodt

Artista e Obra – Um caso de Amor

Uma idéia é expressa, no caso da pintura, por exemplo, em forma e cor num espaço definido, uma tela. De onde vem esta idéia?

Alguns artistas se beneficiam de uma inspiração que vem de uma observação do mundo externo.

Outros buscam a fonte de sua inspiração num buraco escuro que os estudiosos da psique humana definem como inconsciente. Trata-se de um processo que requer um envolvimento muito grande da psique do artista. Por outro lado, é  muito gratificante, pois gera um crescimento tanto do artista como de sua obra, num processo simbiótico onde, em certo momento, fica difícil  separar um do outro. A arte passa a ser sua “religião pessoal”.

Mas por que alguns artistas se sentem atraídos por esse buraco escuro, tomando-o como fonte de sua inspiração? Não posso responder pelos outros, mas posso tentar investigar e com isso procurar elucidar o que me leva a fazê-lo.

Creio ser um caso de pura obsessão. Sou fascinada pela idéia do oculto, do mistério, do que está além da compreensão humana e, por que não dizer, por um  mundo sutil, que não se coloca em palavras.

Gosto muito de desenhar, despretensiosamente, sem qualquer expectativa de fazer um desenho que reflita a realidade externa. Pelo contrário, é um ato lúdico, algo que, quando faço, chamo a criança que há dentro de mim para agir em meu lugar, ou seja, para tomar o lugar da minha consciência. Certa vez li estas palavras, ditas por Picasso, que me emocionaram muito: “Já quando criança pintei como Rafael, mas levei a vida inteira para pintar como criança”.

No inicio, meus desenhos eram feitos no papel preto. Buscava algo no  escuro. O que seria?

Na pintura, a tela é branca, mas o espaço onde busco as imagens e símbolos que acabo por trazer à tona, é escuro, muito escuro e me custa muito trazê-los à claridade.

Por outro lado, as formas que pinto ou desenho são carregadas de muita cor. Já me disseram, inclusive, que minhas telas incomodam por serem muito intensas (com certeza não faço arte decorativa).

Veja só que paradoxo: busco o que há no preto, no espaço escuro e encontro a cor, a luz, a Vida!

Cézanne confessou sobre sua obra: “A natureza, eu quis copiá-la, não consegui. Eu procurava, virava, pegava-a em todos os sentidos, em vão: irredutível. De todos os lados, mas fiquei contente comigo mesmo quando descobri que o sol, por exemplo, não podia ser reproduzido, mas era necessário representá-lo por outra coisa… pela cor… Só há um caminho para exprimir tudo, para traduzir tudo: a cor. A cor é biológica, se posso assim dizer. A cor é viva, só ela é capaz de tornar as coisas vivas”.– que depoimento maravilhoso!

Pintar é para mim um grande sofrimento e uma grande alegria. Buscar no buraco escuro é um ato de muita ousadia e de muita dor. Porém, trazer de lá a luz, a vida, é de uma imensa alegria. É nesse sentido que se pode dizer que o artista basta-se a si mesmo.

E o que é esse “tudo” a que Cézanne se referiu, essa Luz a que me refiro, senão a própria Divindade? Não trazemos, dentro de nosso íntimo, um pedaço, uma fração da grande força Divina? Essa força responsável pela Criação dessa natureza, tão bela, que tantos artistas tentaram reproduzir em vão? Essa força maravilhosa que faz com que você e eu existamos e sejamos peças importantes de toda essa Criação?

Escreveu Schumann: “Projetar a luz nas profundezas do coração humano, eis a vocação do artista”.

Disse Kandinsky: “Quem quer que mergulhe nas profundezas de sua arte, em busca de tesouros invisíveis, trabalha para erguer a pirâmide espiritual que chegará ao céu”.

Bem, escolher esse caminho não é tarefa fácil. Requer muito alimento à alma, muito contato com as emoções da vida, tanto na sua beleza quanto na sua imensa dor, muita introspecção e, principalmente, muita coragem para ir cada vez mais fundo, investigar, investigar e investigar até desnudar-se completamente. Caminho de muita solidão e de muita dor, porém de uma alegria que qualquer um que o escolha trilhar pode conhecer. Caminho cuja força para trilhá-lo vem  do Amor à obra, à humanidade, à Vida.

Marilia Elstrodt

O Ato de Pintar

O tempo fluindo de uma forma não usual.

Entrega total.

Imersão e envolvimento profundo com a obra.

A mágica acontece.

No meio do silêncio uma voz que não diz, se faz ouvir,

Assume o comando.

Um pensamento, uma idéia…

O gesto,

Cores e formas,

A materialização.

A busca do belo,

Da expressão,

Do sentimento.

O cumprimento de um ritual intenso,

Um ir e vir do artista com si mesmo,

Com o espaço a seu redor,

Com o ar, a música, a água, com a terra.

De dentro para fora, de fora para dentro,

Da alma para a tela, da tela para a alma,

Uma troca intensa.

Um corpo a corpo com a obra.

Cavar o branco da tela,

Gerar algo novo, verdadeiro, profundo…

Belo.

Dor…ai, quanta dor, intensa dor…

Linda dor,

Dor da criação.

Marilia Elstrodt

2004